Copa das Mulheres: a batalha das jornalistas esportivas por representatividade

22 de novembro de 2022 às 18:18


Natália Lara e Karine Alves fazem parte da seleção escalada do Grupo Globo para cobrir a Copa do Mundo e compartilham suas análises sobre as mulheres no evento

Lidia Capitani

Natália Lara, à esquerda, e Karine Alves, à direita: jornalistas entram na cobertura da Copa do Mundo (Crédito: Globo/João Miguel Junior e Globo/João Cotta)

Natália tinha dois sonhos quando era criança: ser jogadora de futebol e apresentadora. Ela jogava bola com o pai, com a família, no condomínio, na escola, mas, na época, a única escolinha de futebol próxima a sua casa era apenas para meninos. Então, o sonho de jogar profissionalmente acabou ficando de lado. Por outro lado, o desejo de ser apresentadora se concretizou e foi além: ela se tornou narradora esportiva e, agora, narra a Copa do Mundo de 2022 pelo Grupo Globo.

Duas coisas são comuns às trajetórias das mulheres que trabalham com jornalismo esportivo. A primeira é a paixão pelo esporte, seja o futebol ou outra modalidade. A segunda é a batalha. Quando Natália Lara e Karine Alves, que fará entradas ao vivo do Catar para a cobertura da Globo, falam sobre a presença feminina na cobertura desta Copa, elas falam de conquistas e trabalho duro. Ambas fazem uma analogia da presença feminina na cobertura esportiva com uma porta. Por muito tempo, ela esteve fechada, mas após um “rolo compressor de mulheres”, como brinca Natália, elas conseguiram ultrapassar. “Essa porta estava fechada e não fomos convidadas para entrar, mas nós batemos e batemos, ninguém nos ouviu e tivemos que arrombar”, comenta Karine.

O final de 2022 está sendo tomado pelo futebol, e muitos falam dessa edição como a Copa das mulheres, apesar de estarmos falando de um campeonato de times masculinos. Isto porque o evento traz muitas novidades para as mulheres. A lista de jornalistas femininas que estarão ao vivo comentando, narrando ou até mesmo ao vivo é grande. No Grupo Globo, que inclui o canal aberto e o SporTV, é a Copa com maior número de profissionais envolvidas na cobertura. “Pela primeira vez, as mulheres que vão assistir a Copa do Mundo pelo Brasil todo vão ver outras mulheres e vão se sentir representadas e se reconhecer ali”, reflete Natália.

A Copa, o Qatar e as mulheres
Natália Lara e Renata Silveira serão as primeiras mulheres a narrar o Mundial na TV pelo Grupo Globo. Muitas das profissionais da empresa foram, ou estão sendo, pioneiras em algum ponto da cobertura esportiva. A comentarista Ana Thaís Matos, por exemplo, foi a primeira mulher a comentar um jogo masculino na TV aberta, em 2018, e está, pela primeira vez em sua carreira, participando da Copa. Renata Mendonça também marca presença e comenta os jogos pelo SporTV.

Diretamente do Catar, Karine Alves e Carol Barcellos entrarão ao vivo para noticiar o evento. Nos comentários sobre a arbitragem, teremos Janette Arcanjo e Fernanda Colombo. A lista continua e inclui também atletas e celebridades como Formiga e Deborah Secco. A emissora, que transmite o Mundial há 50 anos, terá mais de 400 horas de conteúdo multiplataforma nesta edição. Muito desse trabalho será fruto do suor destas mulheres apaixonadas pelo esporte.

A “Copa das mulheres” não terá maior participação feminina apenas na cobertura, mas também no time de arbitragem. A Fifa anunciou as profissionais que serão as primeiras a apitar os jogos do Mundial: Stephanie Frappart (França), Salima Mukansanga (Ruanda) e Yoshimi Yamashita (Japão); e as auxiliares Neuza Back (Brasil); Karen Díaz Medida (México) e Kathryn Nesbitt (Estados Unidos).

Um movimento um tanto quanto paradoxo, uma vez que esta edição é sediada por um país que impõe muitas restrições às mulheres e viola direitos humanos, em especial e mais noticiado, contra a população LGBTQIAP+. “É um país em que a violência doméstica não é criminalizada, em que não existe idade mínima para o casamento. Se a menina menstruou, já pode casar”, relata Karine Alves.

Além disso, as mulheres ficam sob custódia dos homens (pai, irmãos, marido) e devem pedir permissão para estudar fora do país, trabalhar ou casar. Elas também têm dificuldade de acesso a tratamentos ginecológicos e reprodutivos. A relação sexual entre pessoas do mesmo gênero também é proibida, com pena de sete anos de prisão.

Apesar de tudo, essas jornalistas batalharam muito para conquistar o sonho de cobrir uma copa no exterior. Também existe o sonho do hexa por cada uma das pessoas que assistem de casa, mas o lado social desta edição não pode ser deixado de lado. “Com todo esse pacote, fiquei pensando que esta será uma Copa muito diferente das outras. Será uma Copa do Mundo única”, diz Karina Alves.

Diversidade além do gênero

Desde que Karine soube que iria para o Catar cobrir o Mundial, ela ainda precisava se beliscar para acreditar que era verdade. “Todos os dias, eu acordava e pensava ‘eu vou para o catar’ e abria um sorriso”, conta. Para a jornalista, foram anos de trabalho para conquistar o espaço. Ela ainda reflete sobre como é ser a profissional mais velha a fazer essa cobertura do Oriente Médio. Apesar dos “40 serem os novos 30”, como ela brinca, a repórter pensa sobre “o quanto essa estrada é ainda mais longa para a mulher negra”.

Muitas matérias online noticiaram que Karine era a primeira apresentadora negra no Esporte Espetacular. “Erroneamente”, ela corrige. Há quinze anos atrás, existiu outra, porém, como acontece comumente com a população negra, essa história foi apagada. “É muito assustador pensar que em todos esses anos de Esporte Espetacular só existiram duas mulheres negras apresentando, sendo que uma ficou no ar por um período de dois anos, acho, e ninguém nem lembra”.

Há diferentes casos de racismo no esporte que já foram notícia no passado, mas há um lado das raízes deste preconceito estrutural que ainda não recebe a devida atenção. Karine ressalta como há muito mais negros e negras no campo do que nos bastidores, na área que pensa o futebol. “O racismo acaba sendo velado, mas ele está presente quando percebemos que o talento da pessoa negra é sempre associado a força e habilidade, mas não à questão intelectual”. Isso se reflete diretamente no jornalismo esportivo. Por isso, Karine faz questão de destacar a presença da sua colega, Débora Gares, na cobertura direto do Catar.

“Eu vejo com muito orgulho esse momento que estou vivendo junto com essas pessoas, com essas mulheres tão competentes, que estão realmente mudando a história. Elas estão abrindo um caminho para outras mulheres. Um caminho tão difícil, mas que não se fechará, que já está sendo asfaltado. Antes, a gente ficava lá com o machado, abrindo, cortando grama, agora estamos começando a asfaltar essa estrada. Quando as próximas vierem, elas vão conseguir desfrutar com mais leveza das suas conquistas”, avalia.

Karine entende que não basta falar apenas de gênero, mas a questão da interseccionalidade também é de extrema importância para o debate. “Quando falamos em mulheres, não podemos colocar todas as no mesmo espaço, porque elas não partem do mesmo lugar. Precisamos falar de interseccionalidade. Elas são atravessadas por realidades e características diferentes, partem de lugares distintos, então precisamos levar isso em conta”.

Assim como Karine, Natália Lara também entende a necessidade de trazer discussões sobre inclusão e diversidade para a pauta esportiva. Em dois momentos diferentes, ela recebeu destaque por suas narrações e comentários. Durante as Paralimpíadas, por exemplo, a repórter descreveu os aspectos físicos de si e dos colegas, num movimento de tornar a transmissão televisiva mais acessível. A ação foi muito bem recebida pelo público, ela conta: “as pessoas entendem melhor a demanda pela acessibilidade”. Entretanto, em outra ocasião, ela usou do pronome neutro “elu” para referir-se a atleta Quinn, da seleção de futebol do Canadá, que se identifica com o gênero não-binário, e a resposta não foi tão positiva.

“Foi uma época bem complicada. Recebi muita represália de pessoas conservadoras, que não acreditam na possibilidade de usar outros tipos de pronomes. Então, eu fui bastante massacrada, ao mesmo tempo em que recebi muitas mensagens legais. Uma pessoa me falou nunca acreditar que isso fosse possível e que se sentia, pela primeira vez, respeitada na televisão. Isso é muito importante, mas tem dois pesos e duas medidas, porque o Conrado, que estava como comentarista comigo, não recebeu tantas críticas como eu recebi. Então, as pessoas gostam de atacar o lado ‘mais frágil’, que teoricamente é a mulher”, relata Natália.

A jornalista conduziu sua trajetória profissional com o intuito de fazer a diferença para o futebol feminino, que por muitos anos foi, e ainda é, menosprezado. Partindo desta missão, ela quer trazer mais pautas para a discussão. “Acredito muito na necessidade da gente respeitar as pessoas acima de tudo. Também acredito que devemos trazer para dentro do debate camadas da sociedade que muitas vezes são esquecidas, negligenciadas. Se eu não falar sobre diversidade, sobre representatividade, vou estar fugindo do que eu sou e do que acredito”.

A mudança de dentro
O apagamento é um processo que permeia a vida das mulheres. Para as atletas femininas, a história se repete. Hoje, conhecemos as nossas jogadoras de futebol como Marta, Formiga e Cristiane, porém, o histórico das atletas mais antigas também foi apagado. E não precisamos ir muito longe para entender o motivo. Entre 1941 e 1979, as mulheres foram proibidas por lei de praticar esportes “incompatíveis com a natureza feminina”, entre eles, o futebol. São poucas as décadas, desde então, em que elas tiveram que correr contra o tempo para reconquistar espaço e reconhecimento.

Nas análises de Karine e Natália, a maior participação feminina na cobertura desta Copa é consequência de vários fatores, que incluem a persistência destas jornalistas por ganhar espaço, a luta das atletas da seleção de futebol feminino e também um movimento da sociedade como um todo.

Para Karine, esta edição é resultado “em primeiro lugar, de insistência, resiliência e competência das mulheres. Em segundo lugar, das empresas que já entenderam que diversidade dá lucro, além de ser um pilar importante. Diante da nossa sociedade brasileira, em que mais de 50% da população é negra, e as mulheres também representam um número expressivo, é preciso se voltar para entender esse público”.

Lara fala sobre como esse movimento se relaciona com a sua própria trajetória, pois ela sempre foi pioneira: a primeira mulher a narrar um jogo da NBA no Brasil e a primeira voz feminina da América Latina a aparecer no video game Fifa 23.

“Para mim, 2016 é um ano que marca muito o esporte, devido à campanha da seleção feminina dentro dos Jogos Olímpicos, em que as pessoas chegaram a reavaliar o quanto desvalorizamos o trabalho e o futebol das mulheres. Isso gerou um movimento que foi amadurecendo até chegar em 2018, com as emissoras começando a entender que existia uma necessidade de inserir mais mulheres. Eu vejo a Copa do Mundo de 2018 como um divisor de águas para o jornalismo esportivo, com a presença de mulheres e que dali para frente só cresceu”, analisa.

A Copa do Mundo por elas
A paixão pelo esporte e pelo o que ele representa para a sociedade é o que move essas mulheres. Enquanto que, para Natália, o futebol sempre esteve presente, para Karine, ele aconteceu de uma forma diferente. Ela não escolheu o jornalismo esportivo por causa da modalidade. “É interessante, porque o que me fez permanecer no esporte, além da paixão, foi o lado social e o modo como ele retrata o Brasil. Foi ali que eu entendi como podia contribuir.”

Será a primeira vez que a jornalista viajará para o país sede do evento. “Ir para o Catar, para mim, é uma viagem sem volta, no sentido de avanço”, destaca Karine. Será também a primeira Copa do Mundo no Oriente Médio, em que diferentes culturas irão se encontrar para disputar o título. “Será uma experiência antropológica”, diz a repórter.

Entretanto, Karine não encara esta viagem como um prêmio só para si. “Encaro de uma forma coletiva. Não sou só eu que estou vencendo, são as mulheres, as mulheres negras, todas as pessoas que, de alguma forma, se identificam com a minha história. Quero que elas olhem e pensem ‘uma conseguiu, então vamos lá, agora eu posso ser a próxima’”.

Natália também enxerga da mesma maneira. “Essa Copa será um marco muito grande para nós, mulheres, para a nossa presença. Acho que vai ser uma Copa muito histórica para todas nós”, diz.

“A lista de mulheres é grande, e, para mim, estamos consolidando tudo o que trabalhamos. Estamos consolidando uma conquista que não tem mais volta. Conseguir colocar tantas mulheres nessa cobertura prova que viemos para ficar e, de agora em diante, será daqui para mais, com mais mulheres. Doa a quem doer, agrade a quem agradar”, completa Karine.

Fonte: Meio&Mensagem


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