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Anúncio feito apenas com IA reabre debate sobre limites e regras

Publicado em 21/07/2025 às 12:30, por: Patricia Alexandre

Setor discute se a legislação atual é suficiente para garantir que o consumidor não seja enganado ou se é preciso uma regulação nova

Anúncio do Burger King mostra situação absurda em tom realista: precauções para não infringir direitos de imagem -Foto: Divulgação

Em 2023, a Volkswagen causou polêmica ao criar, com inteligência artificial (IA), um dueto entre Elis Regina, que morreu em 1982, e sua filha, Maria Rita. Dois anos depois, a IA passou a ocupar o centro de campanhas publicitárias. Nas últimas semanas, Burger King, Latam Airlines, o Instituto Sou da Paz e a fabricante de insumos agrícolas Syngenta lançaram peças protagonizadas por personagens geradas inteiramente por IA.
A tendência alcançou também o entretenimento: o 11talk show” fictício da influenciadora virtual Marisa Maiô, criado com IA e em alta nas redes sociais, já atrai patrocínios. O avanço desse tipo de formato reacende o debate sobre os limites éticos do uso da tecnologia e as diretrizes para sua aplicação.

O executivo-chefe de criação da AlmapBBDO, Marco Giannelli, observa que houve um avanço “exponencial” das ferramentas de IA nos últimos meses, o que impactadiretamente, as possibilidades criativas. A agência é responsável tanto pela campanha da Volkswagen quanto pelas mais recentes do Burger King.
“A IA permite ir mais longe criativamente, porque reduz as barreiras técnicas. Mas, com isso, a responsabilidade aumenta. Nunca consultamos tanto o jurídico. Os clientes querem, com razão, garantir controle sobre tudo o que vai ao ar. Uma regulação mais clara seria favorável para todo mundo”, afirma Gianelli.
Em peças de 15 segundos criadas com IA, a rede de fast food explora situações absurdas em tom realista. Na primeira, uma idosa tenta apagar um incêndio no restaurante. A empresa planeja lançar ao menos outras duas campanhas com o mesmo mote nas próximas semanas.
Segundo a diretora de marketing do Burger King, Giulia Queiroz, o uso da IA está menos relacionada à disponibilidade da tecnologia e mais à cultura, já que o conceito criativo faz referência a um tipo de “meme” que viralizou, no qual repórteres digitais entrevistam personagens fictícios em situações improváveis, com resultados tão absurdos quanto cômicos.
”Vimos uma forma de nos conectarmos com a conversa cultural do momento”, diz Queiroz. “Nosso objetivo era provocar, brincar com o surreal e manter a marca presente em conversas que estão movimentando a internet”.
A rede decidiu adotar uma série de precauções na campanha. Entre elas, contratou atores para alimentar a ferramenta de IA, garantindo que todos os rostos exibidos nos filmes fossem de pessoas reais – uma forma de proteger os direitos de imagem. A produção ficou a cargo da Paranoid, que usou o Veo 3, ferramenta de IA generativa audiovisual do Google, lançada em maio. Seguindo diretrizes da Restaurant Brands lnternational (RBI), controladora global da marca, a empresa não usou IA nas imagens dos sanduíches, prática que poderia, inclusive, ser considerada enganosa por órgãos reguladores brasileiros.

Nos filmes digitais, não foi incluído aviso sobre o uso da tecnologia. Já nas peças de mídia exterior, como painéis e mobiliário urbano, a empresa sinalizou o uso da IA com a mensagem “Isso é IA. Isso é BK”.
“Tomamos cuidados adicionais, além do que é exigido, e acreditamos que a mensagem foi compreendida. As pessoas entenderam que é um meme, que é brincadeira. Até quem não gostou, gerou conversa. E isso, pra gente, é sinal de sucesso”, diz Queiroz.
A Syngenta, fabricante de insumos agrícolas, usou a IA para criar uma dupla sertaneja “Bio & Lógico” e enviar anúncios personalizados para centenas de clientes. A empresa respondeu ao Valor que “considera importante informar o uso de IA em campanhas como esta, até para que a inovação seja destacada e reconhecida”.
O Instituto Sou da Paz seguiu o mesmo caminho e informou na campanha mais recente, para combater a violência armada, que criou a personagem MarlA, a partir de milhares de imagens, com IA.
O salto tecnológico proporcionado pelas novas ferramentas veio para ficar, mas exige cautela, diz o produtor executivo e sócio da Paranoid, Egisto Betti Júnior. A produtora, que tem utilizado a tecnologia em campanhas para clientes, prepara para o fim de julho o lançamento de um videoclipe criado integralmente com IA. Para Betti, a busca por produções mais rápidas e baratas pode ter um efeito colateral. “Isso pode virar uma bolha”, diz. “O público vai receber um bombardeio tão grande de publicidades geradas com IA que corre o risco de enjoar.”
O tema também levanta preocupações sobre transparência e expectativa do consumidor. A CEO da Associação Brasileira das Produtoras de Audiovisual
(Apro) e da FilmBrazil, Marianna Souza, vê com ressalvas a campanha da Latam, que promove o inverno no Chile com personagens e cenários criados por IA também usando a ferramenta Veo 3.
“Um comercial que vende uma experiência de viagem, em um cenário que não é real, com pessoas que não são reais vira algo fictício e acaba sendo quase que uma propaganda enganosa”, diz ela. Para Souza, “essa conexão com a realidade é cada vez mais o que o consumidor quer ver nas telas.” Procurados pela reportagem, a Latam e o Google disseram que “a receptividade tem sido positiva e rendido índices semelhantes a outras campanhas.”
A Apre, que reúne 130 produtoras de audiovisual no país, elaborou um manual de boas práticas para o uso de IA. O material inclui orientações técnicas e cláusulas contratuais. “Ainda estamos em um limbo regulatório quanto ao uso de direitos autorais de imagens, mas esperamos avanços no segundo semestre”, afirma Souza.
Sócia do escritório Kasznar Leonardos e especialista em propriedade intelectual, Fernanda Magalhães explica que o uso de IA na publicidade já tem amparo na legislação brasileira, embora ainda não exista uma norma específica para a tecnologia. Tanto o Código de Defesa do Consumidor quanto o Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária (do Conar) determinam que a comunicação comercial deve ser clara, verdadeira e não pode omitir informações relevantes, sobretudo aquelas que influenciam a decisão de compra.

“Não existe uma lacuna jurídica. A IA é permitida, desde que não cause confusão ou gere expectativas enganosas sobre o produto ou serviço anunciado”, observa.
Segundo a advogada, o mesmo entendimento prevalece em países como Reino Unido e Estados Unidos, onde não há obrigação legal de informar o uso da IA, mas recai sobre o anunciante a responsabilidade pela clareza e veracidade da mensagem. Ela diz, no entanto, que um aumento nas campanhas geradas por IA pode elevar à judicialização de casos.
A CEO da associação de publicidade digital lnteractive Advertising Bureau Brasil (IAB), Denise Porto Hruby, diz que campanhas geradas com IA devem trazer um aviso claro ao público. “Com a IA gerando conteúdo tão realista, a linha entre o que é real e o que é criado por máquina pode ficar tênue, e isso pode abalar a confiança do consumidor”, sinaliza. Além de um guia de boas práticas de uso da IA na publicidade, a entidade está montando um curso sobre IA na publicidade para atualizar os profissionais do setor.

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