A Mídia e o poder

11 de junho de 2012 às 13:37


Andy Dufresne era um banqueiro americano que teve a vida dramaticamente alterada quando sua mulher e o amante foram encontrados mortos dentro da sua própria casa. Principal suspeito pelo crime, Andy foi condenado à prisão perpétua e enviado para o implacável Presídio de Shawshank. Lá enfrentou adversidades de toda espécie, mas com inteligência, boas idéias, obstinação e paciência raras, ele foi aos poucos transformando o pequeno mundo à sua volta num lugar melhor para ele e para os seus amigos.

Andy Dufresne não existe: é invenção de Stephen King e apareceu no conto ‘Rita Hayworth e a Redenção de Shawshank’. Sua história é tão boa que o conto virou filme, dirigido por Frank Darabont, com Tim Robbins no papel principal e Morgan Freeman num papel não menos importante. ‘Um Sonho de Liberdade’ é delicado, memorável, inspirador.

A saga de Andy Dufresne oferece insights poderosos para os que habitam o planeta – incluindo aqueles que se dedicam à publicidade, atividade fincada num dos cruzamentos mais nervosos do momento por combinar variáveis em visível processo de mutação: pessoas, marcas e canais de comunicação.

As pessoas mudaram primeiro. As estruturas sociais são sensivelmente mais complexas que no passado e, na medida em que têm feito suas escolhas, as pessoas têm se tornado sistematicamente mais diferentes umas das outras. Deixou de ser possível saber algo suficientemente consistente sobre alguém a partir das suas características demográficas (sexo, classe sócio-econômica e idade) ou mesmo, em casos extremos, de suas características psicográficas (estilos de vida, hábitos e atitudes) – não é incorreto pensar que um mesmo indivíduo pode assumir diferentes perfis psicográficos dependendo do momento.

Porque o mundo mudou, o Marketing mudou. Detectar oportunidades de mercado exclusivamente a partir de critérios demográficos ou psicográficos nem sempre é suficiente: muitas decisões são baseadas em tendências originadas em pequenos grupos– por vezes tão pequenos quanto imperceptíveis se inseridos em universos maiores, estatisticamente consistentes. Uma parte expressiva das mega-marcas que imperavam no passado se fragmentaram e se multiplicaram, como resposta aos grupos sistematicamente menores de pessoas, que se concentram em torno de valores muito específicos.

As novas tecnologias viabilizaram o surgimento de um universo de canais de comunicação apropriado para vozes e desejos tão diversos. Uma transformação radical dos hábitos de consumo de Mídia é algo inevitável – por hora, menos verificável entre os mais simples e maduros, mas fato contundentemente verdadeiro entre os mais jovens e abastados, que têm possibilidade integral de acesso a todos os novos meios de comunicação.

Pessoas diferentes, marcas diferentes, hábitos de Mídia diferentes. A conseqüência não poderia ser outra, senão o surgimento de uma indústria publicitária modificada e efervescente. Há duas ou três décadas, a publicidade se concentrava em torno de esforços criados especificamente para veículos de comunicação. A concepção foi ampliada e hoje qualquer possibilidade de contato pode e deve ser incluída no escopo publicitário, o que inclui uma série de atividades típicas destes novos tempos, como branded entertainment brand experience, geração de conteúdo, comunicação 360º, out-of-the-box, bellow-the-line ou marketing viral – não importa o rótulo.

Por trás do suposto glamour outorgado aos que planejam e controlam verbas de comunicação, há uma concepção utilitária da profissão, enquanto engrenagem da máquina econômica: porque maneja investimentos de terceiros, a publicidade – e em especial a área de Mídia, principal responsável por estabelecer a conexão entre marcas e pessoas – é uma atividade necessariamente impregnada de sensatez e responsabilidade. As recomendações se apoiam num incrível arsenal de pesquisas de audiência e técnicas de planejamento, desenvolvidas durante décadas.

O tema do momento é o retorno sobre os investimentos, foco prioritário de fóruns promovidos por entidades de agências e anunciantes e de seminários nacionais e internacionais. A tarefa de prever a eficiência dos investimentos está ligada à capacidade de criar padrões de análise razoáveis e estabelecer comparações com esforços de natureza conhecida. Nos meios tradicionais, a tarefa é relativamente simples, na medida em que as pesquisas são fartas e os formatos são previsíveis. Mas para novos canais de comunicação o trabalho é espinhoso, porque prevê a quantificação de esforços ainda sem base sólida de pesquisa e com características de abordagem muitas vezes incomparáveis entre si.

Há milhões de reais em circulação na publicidade brasileira destinados, em grande parte dos casos, a um seleto clã de grupos de comunicação e veículos. Ainda que tecnicamente defensáveis, é possível que em algumas situações as decisões mais simplistas e ortodoxas sejam provocadas por uma combinação de comodismo e insegurança. Têm sido razoavelmente comuns as situações em que o desejo de investir em novos veículos ou praticar novos formatos de comunicação entra em rota de conflito com a necessidade de justificar cada centavo investido – e, não raramente, a balança se inclina para o lado dos esforços tradicionais e comprovadamente seguros.

A questão não é discutir o grau de contemporaneidade deste tipo de postura, mas o desprezo ao poder sutilmente outorgado aos envolvidos nos processos de decisão de investimentos de comunicação. Após toda a técnica e todo o comércio, pode restar algo capaz de transformar a vida das pessoas, na mais nobre concepção da palavra.

Há muitos projetos batalhando por um lugar no mercado. Encontra-se de tudo – inclusive uma série interminável de caça-níqueis, coisa que tem lá sua utilidade, dependendo do caso. Muito freqüentemente, no entanto, saltam aos olhos projetos conceitualmente impecáveis, conduzidos e defendidos com paixão pelos seus empreendedores: são programas de TV, revistas especializadas em temas especiais, diferentes manifestações culturais – como eventos musicais, filmes, festivais de cinema, de teatro e de dança -, oficinas profissionalizantes, esforços de restauração do espaço urbano e projetos ligados à responsabilidade ambiental. São iniciativas absolutamente nobres, cada qual a seu modo, que precisam do investimento privado para sair da condição de sonho para virar realidade.

Uma pequena parcela dos recursos em circulação no mercado publicitário teria o poder de viabilizar uma parte expressiva dos projetos disponíveis. Pode-se fazer uso ou não deste poder, mas é uma bobagem abrir mão dele. Não se trata de praticar o mecenato, descomprometido de resultados. A função da profissão é conectar marcas e pessoas com técnica, responsabilidade e criatividade. O fato é que um olhar atento pode associar marcas a projetos impregnados com um alto teor de legitimidade e, simultaneamente, entregar uma indústria cultural democratizada e enriquecida, mais acesso à cultura, mais empregos, mais oxigênio para o planeta.

Trata-se de olhar para algo além do que se vê – como, aliás, o fez Andy Dufresne. Sua vida em Shawshank começou a mudar quando, com seus conhecimentos de banqueiro, recomendou ao Capitão do Presídio um caminho fiscal que lhe poupou uma boa quantidade de dinheiro. Andy teve direito a um prêmio e pediu um balde com garrafas de cerveja – queria que seus amigos as tomassem no telhado do presídio, sob o sol, sem a visão dos muros. O Capitão achou pouco, e com desdém autorizou a execução do pedido. Mas Andy não negociou um balde de cervejas, e sim de uma sensação de liberdade que não tem preço.

Basta um olhar atento e uma pequena mudança de atitude para assumir o poder que generosamente é concedido aos que planejam e controlam verbas de Marketing e comunicação. Isso será suficiente não para mudar a função da profissão, mas para criar uma outra razão para a sua existência.

Paulo Camossa Júnior – Diretor Geral de Mídia da AlmappBBDO e membro do Conselho Superior do Grupo de Mídia SP


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